Além do colesterol: a inflamação como fator de risco
Há alguns anos a hipótese de que a redução da inflamação pode reduzir o risco de doença cardíaca começou a ganhar espaço. No último Congresso Europeu de Cardiologia, a hipótese foi confirmada e trouxe implicações maiores: a redução da inflamação pode diminuir também a incidência e a mortalidade por câncer de pulmão. É o que mostra um estudo realizado com mais de 10.000 pacientes de mais de 40 países que já tiveram um ataque cardíaco. O resultado pontua o fim de uma era e inaugura o começo de outra: o da medicina personalizada para doentes cardíacos e pacientes com câncer.
Há mais de vinte anos os pesquisadores Paul M. Ridker, diretor de Centro de Prevenção de Doenças Cardiovasculares no Brigham and Women’s Hospital, em Boston (EUA), e Peter Libby, especialista em medicina cardiovascular do mesmo hospital, estudam a inflamação como fator de risco para doenças cardíacas. Foi na década de 1990 que começaram a ser formuladas as primeiras teorias de que a inflamação era um componente importante em desfechos como o ataque cardíaco e o acidente vascular cerebral. Descobriu-se que as placas responsáveis pelos eventos são acompanhadas por uma reação inflamatória que também tem papel importante no seu rompimento. Há anos também se sabe que as estatinas, usadas para redução do colesterol em pacientes de risco, também têm ação anti-inflamatória e reduzem o risco de doenças cardíacas.
O que nunca se soube é se a redução era resultado do controle dos índices de colesterol ou da ação contra a inflamação. O grande desafio dos pesquisadores era convencer os médicos de que o tratamento contra a inflamação era tão importante quanto a luta contra o colesterol. Agora, com os resultados do estudo Cantos, liderado pelos dois pesquisadores de Boston, isso, enfim, é possível. “Como cardiologista, vi três amplas eras de cardiologia preventiva. Primeiro, falávamos apenas da importância da dieta e exercício. Depois, surgiu o tratamento com estatinas para controle do colesterol. Agora estamos vendo o começo de uma nova era.”
O canakinumabe
O estudo Cantos testou se a redução da inflamação em pacientes que tiveram um ataque cardíaco prévio pode diminuir o risco de outro evento cardiovascular. O medicamento usado foi o canakinumabe, um anticorpo monoclonal humano que neutraliza a sinalização da interleucina-1β, reprimindo assim a inflamação. Participaram 10 061 pacientes que tiveram anteriormente um infarto e apresentaram níveis persistentes e elevados de proteína C reativa de alta sensibilidade (hsCRP), um marcador de inflamação. Todos os pacientes receberam cuidados padrão agressivos, que incluíam altas doses de estatinas que diminuíam o colesterol. Além disso, os participantes foram randomizados para receber 50, 150 ou 300 mg de canakinumabe ou um placebo, administrados por via subcutânea uma vez a cada três meses. Os pacientes foram acompanhados por até quatro anos. Os resultados focaram em dois importantes desfechos: no primário, a ocorrência de infarto do miocárdio não fatal, acidente vascular cerebral não-fatal ou morte cardiovascular; no secundário foram incluídos a internação por angina (dor no peito) instável que requer revascularização urgente.
O canakinumabe em doses de 150 ou 300 mg reduziu o risco de um evento cardiovascular (o desfecho primário) em 15% e 14%, respectivamente. O desfecho secundário teve queda de 17% nos grupos que tomaram 150 ou 300 mg. O resultado é ainda mais positivo quando a redução dos níveis de proteína C é grande logo após a primeira injeção: 50% dos pacientes que obtiveram um valor menor que o mediano aos três meses após a primeira injeção apresentaram uma redução de risco de 27%. “Menos é melhor para colesterol e menos é melhor para inflamação”, diz Ridker. O médico defende o conceito de uma medicina preventiva personalizada no qual pacientes com doenças cardíacas com níveis altos de colesterol e proteína receberiam uma dose elevada de estatina e posteriormente seriam avaliados para saber se há um risco residual – quando o colesterol permanece alto, mas a proteína é aceitável, ou quando o colesterol é aceitável mas a concentração da proteína ainda é alta. Esses pacientes podem receber uma dose adicional de tratamento para colesterol ou para inflamação, respectivamente.
Quando se pensa na relação custo-benefício, o tratamento pode ser mais indicado para pacientes com grande redução dos níveis de PCR. Uma dose do remédio pode custar até R$ 60 mil. No Brasil, atualmente, ele é vendido com o nome de Ilaris e é utilizado para doenças anti-inflamatórias auto-imunes como artrite idiopática juvenil. “Aqueles que respondem melhor ao tratamento podem continuar usando canakinumabe, e os que não apresentam menores índices podem parar, pois não mostraram um resultado tão significativo”, diz Ridker. Qualquer discussão sobre o preço do remédio, no entanto, segundo Libby, é precipitada. “Todas as especulações são erradas, porque ninguém sabe o valor do medicamento, nem eu”, afirma o médico. “E mesmo se tivesse um preço público, o preço pago poderia ser diferente para cada situação.” Em termos de risco-benefício a droga é considerada segura. Aproximadamente um em cada mil pacientes apresentaram infecção potencialmente fatal.
Surpresa para o câncer
“Não foi uma surpresa, mas uma maravilhosa descoberta.” É assim que Ridker descreve o que ele e sua equipe desvendaram sobre a inflamação e o câncer. O estudo mostrou que o canakinumabe reduziu em 77% as taxas de mortalidade por câncer, especialmente o tumor de pulmão, assim como sua incidência (67%), e sugeriu que a mesma via inflamatória que é um fator de risco para doenças cardíacas também pode iniciar ou estimular o crescimento de tumores. “Os dados são emocionantes porque eles apontam para a possibilidade de retardar a progressão de certos tipos de câncer”, diz Ridker. Para Libby, o resultado abre uma nova porta no tratamento dessa doença. “É um resultado preliminar que tem que ser estudado mais profundamente, mas é uma nova era anti-inflamatória que pode ser muito eficaz para nossos doentes.”
Adaptado de Mercola